A MORTE de
FRANCISCO FERRER





NA IMPRENSA SETUBALENSE







 Artigo Inédito de  CARLOS MOURO


O carácter local, bem como a periodicidade semanal dos periódicos compulsados – Independente, O Elmano e Germinal – impedia-os de seguirem o palpitar diário da vida internacional. Para tanto circulavam inúmeros títulos nacionais. Quotidianamente, estes traziam a todos as mais desvairadas imagens do horror que se vivia nas ruas de Barcelona. Talvez por isto a generalidade da imprensa sadina (conhecida) não se mostrou sensível aos sucessos da capital catalã, em Julho de 1909 (espelhando igual atitude dos setubalenses?). Porém, o fuzilamento de Francisco Ferrer calou fundo no espírito dos periodistas locais e, por certo, no ânimo dos respectivos leitores. A reacção dos periódicos sadinos variou, compreensivelmente, em função do posicionamento político dos respectivos corpos redactoriais.
Assim, o Independente – que, à época da “semana sangrenta”, era editado por Luís Augusto e tendo como redactor Miguel Ângelo Silva Soares, genro do industrial e proprietário António José Baptista (1854-1912), poderoso influente local e autarca, último abencerragem, na cidade, do poder real e que, após 16 de Junho de 1910, se subintitularia “semanário monárquico” – em nome de valores piedosos e profundamente católicos, lá foi lamentando a morte de Ferrer, do mesmo modo que condenava as outras mortes ocorridas nas ruas da Catalunha. Desaprovava a política antimilitarista (“utopismo demasiado louco (…), crime de lesa nacionalidade”); lastimava a perturbação da ordem, a quebra da honra nacional de um país, a que conduzira um “sentimentalismo piegas e balofo”, por “arremetidas revolucionárias”. Os “nefastos propagandistas” (os anarquistas e os republicanos eram, para o citado periódico, a mesma coisa) haviam desorientado os “obreiros do progresso” que, em Barcelona, “serviram de alvo às mausers, numa hecatombe horripilante”. Essa “propaganda dissolvente” fizera acreditar que na destruição de tudo quanto representava a “ordem social” se encontraria “o bem-estar, a felicidade e a riqueza”. Reprovando a violência, ciente de que um crime não pode a sociedade puni-lo com crime igual, o Independente lá foi defendendo a repressão governativa pela força e estranhando a defesa exclusiva que se fazia de Ferrer. Não percebendo como era possível que “os nossos republicanos e anarquistas” calassem esse facto, interrogava-se: “porque se faz todo este barulho em volta da individualidade do fundador da Escola Moderna, e se esquecem todas as demais vítimas dos acontecimentos da Catalunha?”.
Diversa era a posição d’O Elmano – “semanário político, literário e noticioso” que alinhava (desde 1895, pelo menos) com os republicanos, tendo a dirigi-lo Leonardo Duarte Júnior (1859-1915), um destacado pioneiro local do novo ideário. Para O Elmano – seguindo, aliás, o que se escrevera nas páginas do Diário Popular – o crime que se perpetrara nas masmorras do castelo de Montjuich, nesse 13 de Outubro, pouca importância tinha, se comparado com o enorme atentado social e civilizador que se praticara. Revelando os traços anticlericais tão queridos aos republicanos, escreveu-se: “A Espanha católica, que ainda há dois dias, em Melilla, dançava e cantava em honra da Virgen del Pilar, fuzilou Ferrer, uma intelectualidade e um carácter”. Segundo o ponto de vista d’O Elmano, aquele pedagogo não devia ter sido fuzilado porque “era uma inteligência e na espécie humana as inteligências poupam-se como os diamantes e as pérolas” e “porque o seu processo foi iníquo e monstruoso e o mundo civilizado intercedia por ele”. A 30 de Outubro, em artigo firmado por Fazenda Júnior – “Melilla e Montjuich” – escreveu-se que o fuzilamento de Ferrer “desonrou para sempre a Espanha negra de Torquemada, de la Cierva e de Maura”, associando, deste modo, o nome do inquisidor-geral da Península Ibérica – Tomás de Torquemada (1420-1498), ligado ao horror do Santo Ofício e ao mais cruel obscurantismo religioso – aos governantes da Espanha de então, nomeadamente a António Maura y Montaner (1853-1925). O Elmano atribuía aos “reaccionários mitrados” a verdadeira responsabilidade pelo assassinato. Maura e os seus não passavam, na óptica de Leonardo Duarte Júnior, de “simples instrumentos dos ódios ultramontanos”. A conclusão surgia, crua: “aquele país, dominado ignominiosamente pela reacção clerical e jesuítica, não mais se levantará”.
O Germinal – “defensor dos oprimidos”, conotado com o ideário anarquista, publicado aos sábados sob a direcção do professor do ensino livre e, depois, solicitador Martins dos Santos (?-1951), – foi o periódico que mais violentamente protestou pela prisão e subsequente execução do educador espanhol. Uma vez “consumado o atentado liberticida contra Ferrer”, a 5 de Setembro, o Germinal lembrou que “a Espanha reaccionária de há muito acalentava a doce esperança de inutilizar o fervoroso apóstolo da educação livre”. Aquando da revolta de Barcelona, aquele era quem “mais fundo cortava nos interesses e na estabilidade da burguesia dominante”. O Governo espanhol – “representante e fiel intérprete dos baixos sentimentos dessa burguesia odiada” – não hesitou. Apesar de todos os protestos Ferrer seria fuzilado, a 13 de Outubro de 1909. Três dias depois o periódico de Martins dos Santos, empregando a violência verbal que sempre o caracterizara e caracterizaria, titulou, a toda a primeira página: “Um crime monstruoso”. A introduzir a funesta notícia, a cinco colunas, lia-se: “A Espanha burguesa, militar e clerical acaba de cometer contra Ferrer o mais monstruoso crime do século XX”.
Setúbal e os Setubalenses
condenaram o fuzilamento de Ferrer.




Em Setúbal, a 24 de Outubro de 1909, no Casino Setubalense, teve lugar uma sessão de homenagem a Ferrer, convocada por diversas associações de classe (soldadores, caixeiros, construtores civis, corticeiros, trabalhadores das fábricas, marítimos, sapateiros e construtores navais) pela Liga Cosercial, pelos centros Republicano e de Propaganda Liberal, pela Escola Liberal e, ainda, pelo periódico Germinal e pelos representantes de O Século, Luta, Mundo e Diário de Notícias.
Segundo o Germinal “a cidade de Setúbal, cujos sentimentos liberais são indiscutíveis e muito antigos e que sentiu a morte violenta do fervoroso propagandista do ensino racional como se sente a morte dum bom amigo ou bom irmão, longe de obedecer a qualquer intuito político-partidário mas só pela consciência dos seus deveres de solidariedade humana, principia a manifestar-se amanhã contra o maior crime político, primeiro e último dessa natureza e duma tal crueldade que se pratica neste século”. Apelava a quem fosse “deveras liberal nesta cidade” a quem detestasse “o bando negro dos sotainas carnívoros, causadores do estagnamento moral e material dos povos, com todas as grandes misérias e infortúnios inerentes” a quem fosse “amante da justiça” e tivesse “compreendido que a união é a base e a mais sólida garantia da vitória da ideia sobre o preconceito, da luz da verdade sobre a treva dos espíritos”. Todos estariam, supunha o periódico, “de corpo e ânimo” com os iniciadores da manifestação. Solicitava, ainda, a “todos os habitantes liberais de Setúbal, seus arredores e vilas próximas a esperarem na estação os oradores de Lisboa que devem usar da palavra na referida sessão, para acompanhá-los ao Casino Setubalense”. Não se pretendia “ovacionar indivíduos quaisquer” mas sim “render preito à justiça e desagravar a memória de Ferrer e a consciência universal do insulto que lhes foi infligido pelo Governo espanhol, facinoroso e cobarde”. Pretendia-se uma manifestação silenciosa que não provocasse “as fúrias da autoridade local” o que poderia “prejudicar dalgum modo o bom êxito do empreendimento”.
O Casino encheu. Entre os oradores contavam-se os representantes de alguma imprensa de Lisboa e Martins dos Santos, que representava as agremiações operárias e centros. Este foi indicado para presidir à sessão, tendo declinado em Ezequiel Soveral Rodrigues que era “quem mais de direito, por sua inteligência e serviços prestados ao movimento liberal de Setúbal”. Para secretariar a sessão foram aclamados José da Rocha – delegado da Liga Comercial – e Calçada – delegado do Centro Republicano. O primeiro orador foi Martins dos Santos que, após reiterar o repúdio pelo atentado contra Ferrer e após criticar o Governo espanhol, lembrou que “dentre as terras portuguesas aquela cuja história lhe impunha o dever de acompanhar o grandioso movimento de protesto contra as carnificinas de Espanha, destaca-se Setúbal, justamente considerada pela altiva independência do seu povo, pela admirável coesão do seu operariado – a Barcelona portuguesa”. Seguiu-se Campos Lima – que o Germinal intitulava como “nosso amigo e inteligente camarada” – que protestou contra o fuzilamento de Ferrer e contra o facto de em Montjuich jazerem ainda alguns prisioneiros. Falou da Escola Moderna. Enalteceu-a. A sala vibrou intensamente. Em nome do Centro Republicano de Setúbal falou, depois, Joaquim Brandão (1876-1927) que assim se unia a outros republicanos de todo o país que jamais negavam “o concurso do seu protesto veemente e da sua solidariedade sincera, quando se trata de condenar seja qual for o atentado liberticida, ou de promover seja que obra for de reparação social”.
Uma vez realizado o protesto, o Germinal considerou-o uma “manifestação imponente”. No cais ferroviário, a esperar os oradores, chegaram “numerosos grupos” de tal modo que quando o comboio entrou na estação “já pela gare, salas de espera e no largo fronteiro à estação se distribuíam algumas centenas de indivíduos ali levados apenas pelo convite do Germinal por se não ter podido imprimir um manifesto”. O cortejo que se formou foi engrossando. Por alturas do Quebedo já “o aspecto da multidão era soberbo e verdadeiramente consolador”. Alguns elementos das forças policiais intervieram chegando a efectuar algumas “prisões que não puderam manter, tão fortes foram os protestos que surgiram de todos os lados”. O chefe da polícia – Costa – com a conivência do Administrador do Concelho – “congestionado, apopléctico, acabrunhado por aquela cobardia que todos lhe conhecemos” – mandaram formar a cavalaria em frente do Casino e nas traseiras colocar “toda a polícia disponível”.
O Elmano não deu grande destaque às manifestações de 24 de Outubro, pese embora haver condenado o crime praticado pela Espanha católica, nas masmorras de Montjuch, estribando-se num anticlericalismo tão caro aos republicanos. Apenas na edição de 6 de Novembro, numa pequena nota – com o título “Francisco Ferrer” – inserta no canto inferior direito da primeira página, se pode ler: “Por lapso não nos referimos no último número à conferência organizada pelas associações de classe desta cidade e dedicada à memória de Francisco Ferrer.
“Foi uma manifestação imponentíssima como poucas se têm feito em Setúbal. O sr. dr. Campos Lima, que veio de Lisboa, foi acompanhado desde a estação do caminho-de-ferro até ao Casino Setubalense por muitas centenas de pessoas que davam ‘vivas’ à Liberdade e aplaudiam aquele talentoso advogado.
“No Casino falaram os srs. Martins dos Santos, Joaquim Brandão e dr. Campos Lima, produzindo este um brilhante discurso sobre Ferrer e a sua obra. O ilustre orador foi muito vitoriado e aplaudido pela numerosa assistência que, pela numerosa assistência que, por completo, enchia a vasta sala do Casino Setubalense”.
Por seu turno, o Independente viria a referir-se de forma desdenhosa aos protestos. Na edição de 21 de Outubro lê-se: “O directório republicano apenas há dois ou três dias se manifestou no caso Ferrer, aprovando uma pedantesca moção redigida pelo sr. Teófilo Braga.
“Já era tempo, sabidas as contas, mesmo porque os anarquistas da trama começavam a andar resmungões e desconfiados com os parceiros”.
Na edição seguinte, após haver transcrito, em lugar de honra, um artigo saído no Liberal – intitulado “O protesto do directório do Partido Republicano” – procura amesquinhar a reunião de protesto de 24 de Outubro, promovida, nas suas palavras, pelos “republicanos anarquistas aqui de Setúbal”. De Lisboa tinham vindo, afinal, “poucos oradores e dos mais mal cotados”. Depois, referindo-se ao pioneiro do republicanismo local Joaquim Brandão, escreveu: “O melhor discurso, ainda assim, no género republicano, pronunciou-o aquele famoso Dr. Chouriço, já conhecido em Sesimbra, donde é natural. Ninguém percebeu, mas todos disseram ao ouvi-lo: Ah, menino, que bem que falas!”.
Logo depois, criticando a falta de coerência de alguns dos seus adversários políticos escreveu-se no Independente: “Na mesa estava um secretário que não há muito mandava um filho à comunhão, naturalmente por ódio ao clericalismo. Igualmente, vários patriotas, acratas duma cana só, que tínhamos visto na espera dos oradores, estavam depois, devotadamente recolhidos, vendo passar a procissão que nesse dia teve lugar”.
Carlos Mouro